A Economia Política dos Media: 'it's a man's world'. Análise ao documentário Miss Representation (2011)

Artigo de Cláudia V. Silva
Estávamos em Junho de 2020 quando o líder e deputado único do Chega, André Ventura, publicou um tweet sobre a máscara do ministro Eduardo Cabrita. «Quando encontrar no Parlamento a deputada e ex-ministra Ana Paula Vitorino vou dizer-lhe que tem de ter mais atenção a passar a ferro as roupas do marido», pode ler-se. Este tipo de comentário revela que as mulheres, incluindo as mais influentes, continuam a ser associadas aos papéis tradicionais de género. Ao mesmo tempo, os media, incluindo a internet e as redes sociais, contribuem para a amplificação e difusão deste tipo de preconceitos. Ainda que, em alguns casos, a linguagem escrita e os conteúdos visuais utilizados sejam inconscientemente discriminatórios, a verdade é que influenciam a forma como a nossa própria identidade e os nossos estilos de vida são moldados e construídos.
A nossa sociedade pode ser caracterizada como capitalista e patriarcal: consumimos ideais, perspetivas e fantasias masculinas, mas também valores, conceitos e estilos de vida capitalistas (Bourdieu, 1999). Este é o mesmo tipo de sociedade que tenta difundir uma imagem multicultural e inclusiva mas, ironicamente, continua a empacotar as pessoas em categorias com o intuito de influenciar os mecanismos de mercado (Debord, 1991). Se observarmos atentamente os anúncios ao nosso redor, percebemos que os media sobrecarregam-nos com imagens que nos dizem repetidamente quem deveríamos ser e o que deveríamos fazer. E fazem-no de formal irreal ao incutirem-nos modelos e estereótipos de género que já não fazem sentido em sociedades supostamente modernas e igualitárias (Brody, 2000).
As mulheres não são as únicas subjugadas às normas sociais e culturais, cuja autoridade prevê-se que seja limitada ao plano secundário, à satisfação sexual do homem heterossexual assumido e às lides domésticas. Também os rapazes, e até homens adultos, sofrem com aquilo a que se pode chamar de masculinidade tóxica ao serem coagidos a reprimir emoções de fragilidade e pressionados a atingir determinados patamares de poder, controlo e liderança (Connell, 1995; Ferguson & Eyre, 2000; Fivush & Buckner, 2000).
Estes exemplos resultam da formatação a que temos vindo a ser alvo. De certeza que consegue enumerar uma telenovela nacional ou um filme de Hollywood onde a mulher líder é representada como uma pessoa arrogante, calculista, fria e odiada por todas as outras que a rodeiam. Mais fácil ainda é enunciar exemplos da ficção onde a personagem principal, apesar de ser uma mulher, é protagonista de uma história que gravita à volta de um romance, de um casamento ou de uma gravidez. Portanto, à volta da emoção.
«As mulheres são aconselhadas a ter cuidado com o tom de voz, a recuar. São consideradas autoritárias, abrasivas, estridentes, agressivas, emocionais e irracionais»
Caroline Criado Perez (2020)
Estes são os padrões que a nossa cultura nos impinge sistematicamente, daí que determinadas práticas continuem a ser associadas à masculinidade e outras à feminilidade, pois a nossa própria socialização faz questão que assim seja (Alferes, 1997).
Consequentemente, estes processos de rotulagem adquirem um carácter bastante estigmatizante e desencorajador, estando presentes em todas as fases das nossas vidas. Quantas pessoas já não se compararam a um determinado padrão de beleza, ou estilo de vida, e sentiram frustração por não conseguirem atingi-lo? Quantas pessoas já não alteraram a sua aparência para se sentirem integradas? Quantas delas é que não investem mais dinheiro no visual do que na sua própria educação? Muitas. Sobretudo a população feminina que, cada vez mais, se sente infeliz com o seu próprio corpo, tem distúrbios alimentares, depressão, ansiedade, falta de autoestima, comportamentos suicidas e de automutilação. As mulheres não são apenas vistas como objetos, muitas acabam por se percecionar como tal, e esta visão desenvolve atitudes e formas de aceitação de violência interpessoal, incluindo a cultura da violação.
Estamos perante um grave problema de saúde pública e se não questionarmos o mundo em que vivemos continuaremos a reproduzi-lo sem analisarmos com atenção o que pode e deve ser alterado. Os media são fortes instrumentos de mudança, mas tudo depende de quem os controla e da forma como são representados.
Referências bibliográficas:
- ALFERES, V. (1997). Encenações e Comportamentos Sexuais: Para uma psicologia social das sexualidades. Porto: Edições Afrontamento.
- BOURDIEU, P. (1999). A Dominação Masculina. Oeiras: Celta.
- BRODY, L. R. (2000), "The socialization of gender differences in emotional expression: Display rules, infant temperament, and differentiation", in A. H. Fischer (ed.), Gender and Emotion: Social psychological perspectives. Cambridge: Cambridge University Press: 24-47.
- CONNELL, R. W. (1995). Masculinities. Berkeley: University of California Press.
- DEBORD, G. (1991). A sociedade do espectáculo. Lisboa: Mobilis in Mobile.
- FERGUSON, T. J., EYRE, H. L. (2000), "Engendering differences in shame and guilt: Stereotypes, socialization, and situational pressures", in A. H. Fischer (ed.), Gender and Emotion: Social psychological perspectives. Cambridge: Cambridge University Press: 254-276.
- FIVUSH, R., BUCKNER, J. (2000), "Gender, sadness, and depression: The development of emotional focus through gendered discourse", in A. H. Fischer (ed.), Gender and Emotion: Social psychological perspectives. Cambridge: Cambridge University Press: 232-253.
- PEREZ, C. C. (2020). Mulheres Invisíveis. Como os Dados Configuram o Mundo Feito para os Homens. Lisboa: Relógio D'Água.