A importância das professoras e dos professores na construção da identidade de género das crianças
Artigo de Joana Costa
Tudo começou com a leitura do artigo "Género e brincadeiras na educação infantil: as relações entre professoras, meninas e meninos" de Viviane Drumond e Cleidiane Cardoso Da Silva. Publicado em 2019, não foram necessárias muitas páginas para que eu começasse a estudar, de forma interessada e introspetiva, a forte influência dos docentes e das docentes na construção da identidade de género das crianças. Apesar do artigo em estudo ter sido realizado numa escola brasileira, é clara a semelhança com a realidade portuguesa. Existindo ainda uma certa confusão sobre os conceitos de género, sexo e orientação sexual, algumas das conclusões retiradas sobre este artigo são tão básicas que acabam por ser surpreendentes. Como é que eu não tinha pensado nisto antes?
É certo que, na nossa sociedade, as crianças são, desde que nascem, rotuladas quanto ao seu sexo sendo também socializadas e ensinadas a comportarem-se de determinada forma para que possam encaixar nos perfis tradicionais de menino ou menina. Muitas vezes de forma indireta, é através da adoção de, por exemplo, determinadas brincadeiras e peças de roupa que lhes são ensinados e transmitidos os valores da cultura dominante. Por conseguinte, a identidade de género e as relações que vão desenvolvendo desde a infância acabam por serem influenciadas, e até mesmo constrangidas, pela realidade em que estão inseridas. Isto significa que as várias instituições da nossa sociedade, neste caso as educativas, parecem ser pautadas pela heteronormatividade, impondo marcas de género com base nas expectativas das pessoas mais velhas. Destarte, é fundamental que se entenda a diferença entre género, sexo e orientação sexual para que possamos compreender a dimensão da importância deste tema. De modo bastante sumário, o género pode ser encarado como uma construção social; o sexo associa-se a uma característica física do indivíduo; e a orientação sexual reflete o modo como cada pessoa vive a sua própria sexualidade. Ainda assim, é relevante ter em conta que as diversas identidades de género e orientações sexuais não são estáticas, ou seja, podem sofrer alterações ao longo do tempo e do espaço.
Convém sublinhar que as crianças vivem situações de conflito na constituição das suas identidades devido, em grande parte, ao facto de vivermos numa sociedade adultocêntrica onde as pessoas adultas têm autoridade para estabelecer o modo como as relações das crianças, neste caso no espaço educativo, se organizam. Muitas vezes presas aos seus ideais, acabam por negligenciar a perspetiva da criança e atribuem uma poderosa carga simbólica aos jogos e às brincadeiras supostamente femininas ou masculinas. É nesta perspetiva que as duas autoras (e eu, particularmente) defendem que as crianças devem brincar com e como quiserem, desafiando as normas impostas e as crenças sociais.
Denota-se, deste modo, a importância das brincadeiras infantis que, não sendo organizadas adequadamente, podem reproduzir atitudes sexistas e homofóbicas, traduzindo-se em relações desiguais de género. Destarte, caberia ao pessoal docente e não docente procurar meios de mostrar às crianças, desde o primeiro dia de escola, que estas se devem respeitar independentemente das características físicas e das preferências de género. Tal permitiria que problemas sociais como a estereotipação, a violência, a discriminação e a desigualdade não acontecessem. Porém, algumas vezes a escola não assume o papel que deveria assumir, isto é, "ao invés de ser um ambiente que trabalha para excluir a discriminação, os preconceitos e estereótipos, realiza um trabalho oposto, onde a todo o momento reforça a educação sexista, com divisão de atitudes e comportamentos entre meninas e meninos" (p. 675). Como solução à situação exposta apresenta-se, por exemplo, a aplicação do estudo de temas e disciplinas relativas aos género e à sexualidade em cursos de formação de docentes, de modo a formar profissionais mais competentes e respeitadores das diferenças.
Num sentido mais sociológico do tema...
Talcott Parsons, famoso sociólogo norte-americano, referenciado, inclusive, no livro Sociologia da Família e do Género, da professora e socióloga Isabel Dias (2015), ressalta que a diferenciação dos papéis sexuais foi, em grande parte, fomentado pela função socializadora da família onde o papel expressivo e cuidador era desempenhado pela mulher e o papel instrumental ("ganha-pão") era desempenhado pelo homem. Tal ideia, ainda enraizada em boa parte da nossa sociedade, revela-se limitadora, pois a educação em papéis sexuais diferenciados limita a realização pessoal dos indivíduos, fomentando a desigualdade de género e a reprodução de papéis de género mais tradicionais. Deste modo, destaca-se a importância, cada vez mais crescente, da influência dos professores e das professoras uma vez que, com a entrada da mulher no mercado do trabalho, as crianças passaram a fazer a sua aprendizagem paulatinamente fora do círculo familiar. Por esse motivo, as escolas e as creches assumem um papel fundamental na socialização dos indivíduos, inclusivamente no modo como as crianças aprendem e reproduzem os papéis de género impostos. Esta pode ser uma das justificações para o qual as pessoas mais velhas, incluindo os profissionais da área da educação, não devem interferir nem estereotipar (n)as brincadeiras infantis. O facto da professora ou do professor dizer à menina que não deve, por exemplo, jogar futebol pode ser prejudicial para a realização pessoal desta criança, uma vez que está a ser formatada a pensar que este desporto é apenas apropriado para indivíduos do sexo masculino. Como nos diz Isabel Dias (2015), as próprias profissões acabam por ser sexuadas, pois até no caso dos educadores e das educadoras de infância é possível encontrar mais sujeitos do sexo feminino do que do sexo masculino.
Será ainda interessante reconhecer que o início do debate sobre as divisões dos papéis sexuais e da difusão social da problemática do género deve-se, em grande parte, às mobilizações feministas que se opõem à reprodução das desigualdades, das diferenças e da opressão de género. Podemos ainda recorrer aos contributos de Bourdieu que, ao debruçar-se sobre os papéis de género e a dominação masculina (enquanto construção social naturalizada), concluiu que a mulher se expunha, ainda que inconscientemente, a situações opressoras decorrentes do habitus do seu sexo, em grande parte adquirido na escolas e na família.
Sendo a infância o período em que se despertam várias potencialidades da criança, como as artísticas e as desportivas, na maioria dos estabelecimentos de ensino, e inclusivamente em muitos seios familiares, os estereótipos de género continuam a desencorajá-las e a bloqueá-las. Esta situação pode ser novamente explicada pelo facto de os adultos organizarem e imporem determinadas condutas às crianças, de acordo com o conhecimento que detêm sobre o sexo biológico das mesmas. Isto é, são desenvolvidas expectativas em relação à sexualidade das crianças e a diferenciação de brinquedos é um excelente exemplo acerca do reforço que é feito relativamente aos estereótipos de género. Alguns, destinados às meninas, tendem a privilegiar o universo doméstico e outros, destinados aos meninos, tendem a privilegiar, por exemplo, o universo robótico e automóvel. Sendo os brinquedos invenções fabricadas pelas pessoas adultas para as mais novas, são-lhes assim transmitidas, ainda que de forma indireta, vários significados referentes à identidade de género.
Em forma de resumo
Feita esta análise acerca da importância do campo escolar e educativo sobre a construção da identidade de género das crianças, conclui-se que o pessoal docente e não docente são fundamentais na construção identitária das crianças, na medida em que influenciam, ainda que indiretamente e inconscientemente, os seus modos e tipos de brincar. Mais ainda, a família e os pares, tal como a escola, também possuem um papel importante na educação das crianças pois, enquanto agentes socializadores, são os principais transmissores de valores e normas sociais, podendo ir ou não ao encontro da cultura dominante. Torna-se, deste modo, primordial debater o modo como educamos as nossas crianças pois, tal como Viviane Drumond e Cleidiane Cardoso Da Silva constataram, em 2019, a educação sexista provoca problemas atuais, como a desigualdade de género e a homofobia que, por sua vez, devem ser combatidos. Não esqueçamos que as crianças de hoje são os adultos de amanhã.

Referências bibliográficas:
BOURDIEU, P. (1999). A dominação masculina. Oeiras: Celta Editora.
DIAS, I. (2015). Sociologia da Família e do Género. Lisboa: Pactor. ISBN 979-989-693-053-0.
DRUMOND, V. & DA SILVA, C. C. (2019). "Gênero e brincadeiras na educação infantil: as relações entre professoras, meninas e meninos". Revista Inter-Ação, Goiânia, v.43, n.3, p. 666-680, set./dez. 2018. [Consult. 20. dez. 2019]. Disponível em https://doi.org/10.5216/ia.v43i3.48963.