A prova viva de que o rap não é só para rapazes: retrospetiva do caso feminino

18-10-2020
© Inês Barrau
© Inês Barrau

Artigo de Lídia Pinheiro

No podcast Do Género, onde se debate a igualdade no dia-a-dia, abordou-se a questão do género no hip hop, no qual surgiu uma pergunta retórica que passo a citar: «Falar em igualdade de género é hoje mais fácil. E é cada vez mais comum ouvir que "toda a gente devia ser feminista!" Mas será que é mesmo assim?» Isto fez-me pensar e, portanto, foi o ponto de partida para um dos capítulos da minha Dissertação e para o artigo que agora escrevo. Afinal de contas, qual é o papel das mulheres no hip hop, em específico na vertente do rap?

Primeiramente, é crucial explicar o que é o hip hop que, segundo Mariane Lemos Lourenço (2010), é balançar o quadril. Enquanto movimento cultural, teve origem nos Estados Unidos da América, mais precisamente no South Bronx durante a década de 1970, devido a diversos fatores, não apenas sociais, mas também económicos, culturais e políticos (Gravato, 2017: 49). Além destes, várias expressões da cultura juvenil urbana dão aso ao aparecimento do movimento, tal como menciona José Simões (2010: 33). Como objetivos principais, o hip hop destaca, por um lado, a difusão de valores como a paz, união, liberdade e justiça e, por outro, a redução da violência entre gangues e a resolução de diferenças que neles existem através de expressões artísticas. No fundo, o hip hop foi criado com o intuito de favorecer a "tomada de consciência da desigualdade social e a luta contra as discriminações e desigualdades" (Costa & Menezes, 2009: 200).

© Martha Cooper
© Martha Cooper

Assim sendo, por onde andam as mulheres no universo do hip hop? Será que têm um papel preponderante na difusão do movimento? Será que são reconhecidas como parte integrante do mesmo? Como sabemos, desde sempre que a ciência, enquanto construtora do conhecimento, produz e reproduz relações de poder na estrutura social. O facto de cada vez mais se procurar a igualdade faz com que as diferenças de género venham a ser discutidas com mais relevância e de forma mais efusiva. Quando se aborda a questão das manifestações juvenis apercebemo-nos de que a presença feminina tem sido pouca estudada, uma vez que neste tipo de estudo a categoria da juventude é entendida como um todo, isto é, não existe a distinção entre jovens do sexo feminino e jovens do sexo masculino. Ainda assim, a visibilidade atribuída ao sexo masculino é mais visível, na medida em que, "grande parte das análises sobre vestuário, preferências musicais ou estéticas corporais foram, na sua maioria, desenvolvidas a partir de observações, questionários e entrevistas com pessoas do sexo masculino" (Guerra et al., 2017: 16).

Como é observável, o hip hop carateriza-se por estar presente no espaço da rua. Por isso, a dicotomia público (masculino)/privado (feminino) é fundamental para explicar uma das causas principais para a participação reduzida das mulheres nos primórdios do movimento hip hop, na medida em que elucida para o facto de que à mulher apenas dizia respeito o espaço privado do lar sendo, portanto, excluídas dos espaços públicos que eram, sobretudo, destinados aos homens. O mesmo acontecia no mercado de trabalho: à mulher era atribuído o título de cuidadora e era reservada ao mundo da reprodução, enquanto que o homem era considerado o provedor do mundo da produção. O surgimento das mulheres nos movimentos sociais, como aconteceu no caso do hip hop, traz consigo o final da associação à esfera privada, bem como o desenlace da invisibilidade conhecida até então. No entanto, o processo de integração e de afirmação não tem sido tarefa fácil para as mulheres, uma vez que ainda existem determinadas situações quotidianas negativas que as mesmas têm de enfrentar. Essencialmente, isto acontece porque "as ordens morais de sexo/género presentificam-se das mais variadas formas: desigualdade de condições para participação em eventos e na ocupação de cargos de liderança" (Rodrigues, 2013: 30). Indo de encontro ao exemplo concreto do rap, as produções musicais são, na sua maioria, realizadas por indivíduos do sexo masculino, enquanto que ao sexo feminino tem sido atribuído o papel de consumidoras (fãs) (Guerra et al., 2017: 23). Isto não pode ser justificado com a falta de qualidade, mas sim com os aspetos culturais, não só ligados à indústria musical, mas também a todos os cargos de chefia representativos e com maior visibilidade. É relevante acrescentar, aos aspetos culturais, a socialização no seio familiar e escolar para a justificação deste cenário, uma vez que estes continuam a ser determinantes nas expectativas dos jovens, bem como na sua construção identitária (ibidem).

© Bruno Rascão
© Bruno Rascão

Quando observamos os grupos ligados ao hip hop, percebemos que existe um maior número de grupos compostos por elementos masculinos do que femininos. No entanto, quando são compostos por ambos, os elementos do sexo feminino acabam por ocupar um papel secundário, como backing vocal que, no fundo, se carateriza por ser a função desempenhada por um membro integrante - ou convidado - para cantar com o vocalista principal. Vejamos exemplos concretos: no caso português, assistimos ao descrito no grupo Karapinhas. Marta Dias e Maimuna Jalles, integravam o grupo como cantoras mas limitavam-se a cantar refrões e pequenas partes de canções previamente escolhidas pelos rappers do sexo masculino. Além de cantoras, foram bailarinas (na gíria do hip hop, flygirls) acompanhando artistas como o General D (Simões, 2018: 102).

A retrospetiva histórica do rap feminino em Portugal ajuda-nos a entender que as primeiras intervenientes no movimento eram, maioritariamente, afrodescendentes e deram os primeiros passos neste universo no ano de 1989. Entre o período temporal de 1989 e 1998 foram dois os grupos femininos de rap com grande relevância: Divine e Djamal (Simões, 2018: 97). O rap feminino foi marcado pelos grupos mencionados, especialmente pelas Divine uma vez que, em 1995, estas entraram em Geração Rasca - o primeiro álbum de estúdio dos Black Company - e, dois anos depois, em Filhos da Rua, o segundo álbum da mesma banda.  

O principal objetivo do rap é passar uma mensagem a quem o escuta. Ao percebermos as letras das músicas rap, cantadas por mulheres, observamos que os temas, na sua maioria, são as desigualdades sociais, a discriminação racial e a exclusão social, algo que, de acordo com Soraia Simões (2018), faz com que as primeiras rappers tenham tido um papel de "atrizes sociais de uma ação histórica visível". Apesar de o crescimento do universo feminino ter sido mais visível nos Estados Unidos da América, foi fundamental para outros pontos do globo, isto porque a entrada de nomes femininos para o movimento - como Roxanne Shanté, Coletivo Salt-N-Pepa e Queen Latifah - trouxe uma forte presença de temas sobre as questões de género e a condição feminina num meio onde as mulheres não tinham um papel preponderante. Para melhor compreendermos este aspeto, tomemos como exemplo a música Ladies First de Queen Latifah. Podemos reparar que existe uma vontade de afirmação num universo rapidamente associado aos homens, assim como a vontade de dissipar os estereótipos existentes no que concerne à postura e presença de mulheres no hip hop.

Who said the ladies couldn't make it, you must be blind

If you don't believe, well here, listen to this rhyme

Ladies first, there's no time to rehearse

I'm divine and my mind expands throughout the universe

A female rapper with the message to send the

Queen Latifah is a perfect specimen.

(Queen Latifah, All Hail the Queen, Tommy Boy Records, 1989)

Voltando ao contexto nacional, a linha lírica apresentada não difere muito. Os temas presentes nas canções centram-se, em grande escala, no racismo, no machismo e na misoginia que as mulheres sentem, assim como na violência doméstica no interior de grupos racializados (Simões, 2018). Nomes como M7, Dama Bete, Blink, Mynda Guevara, Juana Na Rap, Samantha Muleca, Telma TVON, Capicua, W-Magic, Lendária, Russa e Nenny não podem deixar de ser mencionados quando abordamos a questão do rap feminino em Portugal. De forma a responder à questão inicial, apesar de todos os percalços existentes para as mulheres no hip hop - com especial ênfase no rap - assim como da dificuldade que sentiram/sentem em se afirmarem num universo comummente associado a homens, estas nunca desistiram, nunca "deixaram de criar, até gravar" (ibidem).  

Não admito que digas: "rap de raparigas é wack"

São cantigas de gajos sem amigas

Mana, não permitas dicas tipo "Não és capaz!"

Sou prova viva que o hip hop não é para rapaz"

(M7, Martataca, DJ D-one,  2008)

Referências bibliográficas:

  • COSTA, M. & MENEZES, J. (2009). "Os Territórios de Ação Política de Jovens do Movimento Hip Hop". Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro [em linha]. Vol. 6, pp. 199-215.
  • GUERRA, P., GELAIN, G. & MOREIRA, T. (2017). "Collants, correntes e batons: género e diferença na cultura punk em Portugal e no Brasil". Lectora, 23 [em linha]. pp. 13-34. 
  • GRAVATO, D. (2017). Rap em Portugal: comunidades online, lógicas de comunicação e posicionamentos identitários na internet. Braga: Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais. Dissertação de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura.
  • LOURENÇO, M. L. (2010). Arte, cultura e política: o Movimento Hip Hop e a constituição dos narradores urbanos. Psicologia para América Latina, n.º 19. 
  • RODRIGUES, M. (2013). Jovens Mulheres Rappers: Reflexões sobre género e geração no Movimento Hip Hop. Universidade Federal de Pernambuco. Dissertação de Mestrado em Psicologia.
  • RODRIGUES, M. & MENEZES, J. (2014). "Jovens mulheres: reflexões sobre juventude e género a partir do movimento hip hop". Revistta Latinoamericana de Ciencias Sociales [em linha]. Vol. 12 (2), pp. 703-715.
  • SIMÕES, J. A. (2010). Entre a Rua e a Internet. Um estudo sobre o hip-hop português. Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais. 
  • SIMÕES, S. (2018). "Fixar o (In)visível: Papéis e Reportórios de luta dos dois primeiros grupos de RAP femininos a gravar em Portugal (1989-1998)". Cadernos de Arte e Antropologia [em linha]. Vol. 7, n.º1, pp. 97-114.
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